Minha esperança hoje é a de que, se os fatos e a brutal realidade não nos comoveram e sensibilizaram durante as últimas décadas, pelo menos as tristes imagens do calvário yanomami divulgadas nos últimos dias consigam nos mobilizar para pôr fim ao genocídio a que assistimos omissos. Com a ida do presidente Lula a Roraima no último sábado (21), quando anunciou medidas emergenciais para combater a crise humanitária provocada pelo garimpo, os flagrantes do sofrimento, da desolação e da morte circularam pelo país e pelo mundo.
Foram justamente as fotos de crianças magérrimas, esqueléticas, de idosos esquálidos, moribundos, que impressionaram o presidente: “Tive acesso às fotos nesta semana e efetivamente me abalaram, porque a gente não entende como o país que tem as condições do Brasil deixa indígenas abandonados como estão aqui”, disse Lula, adiantando que em seu governo não existirá mais garimpo ilegal, apesar de reconhecer as dificuldades de combatê-lo.
Que tenhamos plena consciência disto: trata-se de mais um capítulo da conquista do Novo Mundo, que, diante de nossos olhos, acontece agora na região da Serra Parima ― coração do território yanomami ―, e temos, como nação, a desonra e a vergonha de fazer parte desta tragédia. Durante os últimos quatro anos, em nosso solo, capitaneados por um governo cuja bandeira foi a morte, os brasileiros, enquanto nação ― ou ainda, enquanto pátria, como alguns cínicos preferem ― protagonizaram o genocídio do povo yanomami.
E não foi por falta de meios. O Exército Brasileiro mantém três quartéis dos Pelotões Especiais de Fronteiras (PEFs) na Terra Indígena Yanomami: em Maturacá e Auaris, o 5º PEF, e em Surucucu, o 4º PEF, que poderiam ter defendido, o território yanomami dos garimpeiros, ou ou pelo menos contribuído para tal, e evitado esta tragédia humanitária.
O Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam) do Comando da Aeronáutica, que tem como um dos objetivos o monitoramento da atividade aérea (sem a qual o garimpo não é possível e muito menos viável), também poderia ter coibido o intenso tráfico aéreo dos garimpeiros. O controle do comércio e distribuição do combustível de aeronaves teria sido outro meio de coibir o garimpo, mas nada foi feito! E agora só nos resta a vergonha de ter assistido a esse horror sem sequer se levantar de nosso confortável sofá. Fomos omissos, nós, brasileiros. É o mínimo que a decência nos obriga a admitir. Já a omissão das autoridades é criminosa e os responsáveis devem pagar por isso.
Vale lembrar, porém, que o calvário yanomami vem longa data, desde anos de chumbo. É o que tentarei relatar…
Ninguém deveria ser lançado ao inferno por duas vezes. Pois é justamente o que acontece hoje com os Yanomami, que têm sua terra invadida por dezenas de milhares de garimpeiros pela segunda vez em menos de uma geração. Ou seja, são mais uma vez aqueles que resistem à solução final dos conquistadores em pleno século 21.
E não se pode negar o óbvio, a verdade mais gritante: trata-se de uma questão racial. A nação só se permite assistir indiferente à invasão das terras dos Yanomami e ao seu massacre porque, na verdade, trata-os como selvagens, como “índios” – perpetuando esse estereótipo do século 16 -, como fazendo parte de uma sub-humanidade decaída, atrasada. São ainda os “negros da terra” dos séculos 16 e 17.
Trata-se, pois, do racismo, esse elemento fundador e estruturante de nossa sociedade. Sucedesse tal horror nas cidades do interior paulista ou nos povoados gaúchos, a mão pesada do Estado brasileiro restauraria de imediato a lei e a ordem, protegendo seus cidadãos. Mas não é o que acontece quando se trata de “índios”. Esses podem até coexistir no mesmo espaço que o “nosso”, mas não fazem parte, para todos os efeitos, de nossa mesma humanidade.
Alguém tem dúvida a respeito? Pois então ouçam o ex-presidente da República Jair Bolsonaro, em reflexão sobre o tema em janeiro de 2020:
“Com toda a certeza, o índio mudou, tá evoluindo. Cada vez mais o índio é um ser humano igual a nós”.
Bolsonaro foi denunciado no Tribunal Penal Internacional (TPI) em novembro de 2019, pela Comissão Arns, por crimes contra a humanidade e incitação ao genocídio dos povos indígenas do Brasil.
E o que fez o Estado brasileiro diante disso tudo? Nada. Ao contrário, Bolsonaro durante todo seu governo ― e mesmo antes ― incentivou de todas as formas o garimpo e a invasão das terras indígenas. E isso, sobretudo em plena pandemia de covid-19, quando Bolsonaro vetou na Lei 14.021, de 2020, prevendo medidas de proteção às comunidades indígenas na pandemia, 16 dispositivos que previam acesso à água potável, material de higiene, leitos hospitalares e respiradores.
Ainda durante a pandemia, o Ministério Público Federal, então, por meio da Procuradoria da República em Roraima, expressou preocupação com a declaração do ministro da Defesa, general Fernando de Azevedo, de que o coronavírus estava controlado entre os Yanomami. Causou espanto também ao MPF a inexistência de qualquer medida de proteção territorial justamente durante uma “operação” que visava conter a propagação da covid-19, cujo principal fator de risco entre os Yanomami é justamente o garimpo ilegal.
Em nota divulgada em julho de 2020, o MPF informou que, frente à tentativa de minimizar a gravidade da pandemia e seus riscos por parte dos órgãos e instituições competentes “aguarda decisão do TRF1 em recurso interposto na ação civil pública que busca obrigar o Poder Executivo Federal à única medida eficiente de proteção: a elaboração de um plano emergencial de ações para monitoramento territorial efetivo da Terra Indígena Yanomami, combate a ilícitos ambientais e extrusão de infratores ambientais que possam transmitir a covid-19, inclusive à comunidade isolada Moxihatëtea, está exposta a um risco concreto de genocídio”.
E não nos façamos de desentendidos: o genocídio não é uma figura de linguagem. A existência dos Yanomami está por um fio. Seu mundo ameaçado da maneira que sempre foi: através da extrema violência, da devastação da terra, da morte, da fome, da doença e do desespero.
Pois é! Infelizmente o destino tem seus caprichos. O recrudescimento da invasão de suas terras aconteceu em plena pandemia da covid-19, tornando assim os Yanomami ainda mais vulneráveis: a devastação de uma potencializada pelo perigo da outra. O pesadelo de ver seu mundo, a floresta, literalmente destruído e seus parentes dizimados pelas doenças, pela fome e pela violência é assim vivido ainda uma vez por aqueles que mal se recuperaram do desastre provocado pela primeira febre do ouro em Roraima entre 1985 e 1990. É possível que hoje contemos mais garimpeiros — muito provavelmente mais de 20 mil — do que indígenas em seu território no Brasil.
A devastação causada pela atividade de extração do ouro é inimaginável. Sugiro ao leitor que faça uma busca no Google Images, digitando “garimpo em terra yanomami” para se dar conta do que estamos falando. A selva se transforma em uma paisagem lunar irreconhecível. Não somente a floresta é totalmente destruída como também os rios, que são dragados, desviados de seu curso, aterrados e se tornam uma infinidade de lagos estagnados e sem nenhuma vida.
Como se não bastasse, todo ser vivo é contaminado pelo mercúrio, amplamente usado no garimpo — para separar o ouro de outros metais e amalgamá-lo. Para que tenhamos uma ideia do que estamos falando, cito um estudo da Fiocruz em parceria com o Instituto Socioambiental (ISA), realizado no ano de 2019, que registrou na região de Waikás uma aldeia yanomami com um índice de contaminação de mais de 90% de seus moradores.
Mas toda essa destruição é apenas uma face da moeda. A outra, menos conhecida, é a devastação humana que o garimpo provoca nas comunidades yanomami — tão terrível quanto a primeira. O exemplo mais cru dessa tempestade de violência que se abate sobre as aldeias envolvidas pelo garimpo foi o massacre do Haximu, em que 16 membros de uma aldeia da região do Homoxi, em Roraima, foram trucidados por garimpeiros em junho e julho de 1993.
A intenção dos garimpeiros, armados de facões, espingardas e revólveres era exterminar toda a aldeia, no entanto a maioria dos adultos tinha partido para um acampamento na floresta. Quem permaneceu na casa coletiva e não conseguiu fugir, 12 pessoas, entre elas, um adulto, mulheres, crianças e idosos, foram mortos a tiros e tiveram os corpos retalhados a facão; uma idosa foi morta a pontapés e mesmo um bebê não foi poupado.
Outros quatro jovens yanomami dessa mesma comunidade já tinham sido assassinados algumas semanas antes, no mês de junho, elevando o total de mortos para 16. Esse massacre foi único caso no Brasil julgado como genocídio.
Durante a primeira invasão garimpeira de seu território, os Yanomami viram sua população dizimada em 20% —comparativamente, é como se 42 milhões perecessem. Certamente, todos esses mortos não sucumbiram às armas dos garimpeiros. Mas, nem por isso, deixam de ser vítimas da violência e brutalidade que regem as relações entre garimpeiros e Yanomami. Instalado o garimpo e a corrutela os indígenas são tragados por uma espiral infernal.
De início, quando a correlação de forças local ainda não está do lado dos garimpeiros, armas de fogo e bebida alcoólica são moeda corrente para comprar senão a simpatia ao menos a tolerância dos Yanomami, que de qualquer forma logo se veem subjugados por milhares de intrusos com bastante disposição e poder — possuindo balsas, maquinário, armas de fogo, aviões, helicópteros —, para dominar a região onde se instalam.
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